Elas defendem que é importante falar não só dos casos de sucesso acadêmico, mas também de crianças e jovens que, por causa do transtorno, não falam e não escrevem. 'Uma face desse transtorno é muito dura, machuca. E precisa ser conhecida', afirma uma das mães ouvidas pela reportagem. Mariana, de 19 anos, faz parte do espectro autista
Arquivo pessoal
"É muito doído ver só exemplos positivos na TV, nas palestras. Nem todos as pessoas com autismo vão ter histórias assim. Minha filha não sabe mastigar, não fala. Pessoas como ela não têm voz. Precisa mostrar o lado bonito? Sim. Mas sem essa romantização. Amo minha filha, mas vou amar vê-la convulsionando? Uma face desse transtorno é muito dura, machuca. E precisa ser conhecida."
O relato acima é de Luciana Nassif, de 50 anos. Neste 2 de abril, Dia da Conscientização do Autismo, ela pede que exemplos como o de sua filha, Mariana, de 19 anos, também sejam debatidos, para que o público entenda a amplitude do espectro.
Há, sim, casos de alunos com o transtorno que vão ser aprovados em universidades e que ocuparão postos importantes em grandes empresas. E há também a Mari, o Joseph e a Sophia, sobre quem você lerá nesta reportagem.
Eles celebram outros tipos de conquista (igualmente importantes), como aprender os números, tomar água na garrafa ou se cobrir à noite, quando esfria.
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"No transtorno do espectro autista (TEA), cada caso precisa ser avaliado individualmente. Precisa quebrar a ideia, por exemplo, de que todos são gênios ou agressivos. Cada um terá as suas necessidades e precisará receber um tipo de apoio", explica Rute Rodrigues, psicóloga da ONG Specialisterne Brasil, focada na inclusão de pessoas com autismo no mercado de trabalho.
Para Rita Calegari, psicóloga clínica e hospitalar, focar apenas nas histórias de sucesso e passar um "verniz cor-de-rosa" em tudo pode aumentar o sofrimento de quem está passando por alguma dificuldade.
“A gente tem vivido um excesso de psicologia positivista, como se precisasse fazer limonada de todos os limões. Com as mídias sociais, pessoas que estão vivendo situações muito complicadas, à margem do que é esperado, tendem a se sentir ainda mais marginalizadas", afirma.
"Não podemos banalizar os obstáculos e agir como se tudo fosse muito fácil."
Abaixo, leia os principais trechos dos depoimentos de três mães que ressaltam a importância de não "romantizar" a trajetória de quem tem TEA:
Luciana Nassif, mãe de Mariana (19 anos)
"Há alguns anos, fazia muito frio. Eu lembro que acordei de madrugada, e a Mari estava toda encolhida na cama, descoberta. Eu pensava: se eu não levantar para cobrir minha filha, ela vai passar frio a noite inteira. Ela não sabe gritar: 'mãe, me cobre!'. Aí, toda noite, eu pegava a mãozinha dela e puxava o cobertor. Eu fiz isso acho que um milhão de vezes, aí ela aprendeu a se cobrir. É uma coisa tão pequena pra muitos, mas tão grande para mim. São pequenas conquistas que dão orgulho.
Independentemente do meu esforço, pode ser que ela não chegue ao que a sociedade espera dela. Não adianta só romantizar, falar que é uma bênção. Se você tivesse seu filho na cama, será que o autismo seria tão bonito e maravilhoso? Ele limita. Ele não dá condições para ela fazer coisas que eu adoraria que ela fizesse.
Mariana aprendeu recentemente a reconhecer as cores
Arquivo pessoal
A aspiração que eu já tive, de vê-la na faculdade, deu lugar para a busca pela autonomia dela. Ela pode não aprender a ler e a escrever, mas eu entendi que ela precisa de coisas que vêm antes disso: escovar os dentes, lavar as mãos.
Não tenho mais aspiração acadêmica e me orgulho muito disso. Essa é a realidade da minha filha. Ela aprendeu a reconhecer as cores e a apertar o botão do elevador, sabia? 'Ah, mas só aos 19 que ela entendeu que mora no primeiro andar?' Sim. Ela também precisa ser aceita e acolhida assim.
Conscientização é isso: saia com seu filho de casa, faça com que o vejam mordendo, babando. Quanto mais as pessoas conhecerem esse outro lado, mais vão aceitá-lo."
Waldirene Santos, mãe de Sophia (15 anos)
Waldirene abraça a filha, Sophia, que tem autismo
Arquivo pessoal
"Minha filha está com 15 anos. Ela não fala, não mastiga e usa fralda — é um bebê gigante, porque preciso fazer tudo para ela. Mas ela consegue tomar água, se eu puser em um copo de tampa e bico, para não derramar.
A Sophia acabou o [ensino] fundamental nesse ano que passou. Na pandemia, ficou basicamente sem frequentar a escola, só com atividade remota pela internet. Na socialização, avançou, mas é muita frustração ver minha filha há 9 anos estudando, sem conseguir pegar em um lápis. E como vou colocá-la no ensino médio, no meio de tantos adolescentes? E se ela virar motivo de deboche?
Geralmente, quem romantiza o autismo não tem tantas dificuldades. Deve ser gente que tem filho que come sozinho, fala, vive outro tipo de limitação. No meu caso, não consigo dizer que tenho 'orgulho autista'. Eu abomino o autismo, queria que fosse excluído do mundo.
Sabe aquele seriado do médico, né ["The Good Doctor", sobre um profissional com autismo de alto funcionamento]; aquilo ali, comparado com a minha filha, não é nada. As pessoas acabam conhecendo esse outro lado do autismo [com as dificuldades] só quando passam por isso."
Renata Fridman, mãe de Joseph (8 anos)
Joseph, que tem autismo, beija sua mãe, Renata
Arquivo pessoal
"Meu filho é não verbal e tem deficiência intelectual importante, com comprometimento considerável. Vivo em terapias com ele.
É preciso desromantizar o autismo. Publicações positivas são importantes, porque até trazem representatividade, mas o problema é achar que todos vão alcançar isso, que basta fazer terapia ou que basta querer [para entrar na faculdade, por exemplo]. Cada um tem suas limitações, e o espectro é gigantesco.
Não gosto de generalizar e chamar as crianças de 'anjos azuis' [azul é a cor que representa o autismo], por exemplo, ou falar em 'mães azuis'. Acho que isso que vem com piedade, carregado de preconceitos, como se estivesse rotulando todos. A gente quer justamente a individualização e a compreensão de que cada um é de um jeito. Sem esse capacitismo e esse preconceito.
A maior campanha rolando atualmente entre as pessoas com TEA é a de que lugar de autista é em todo lugar. É na universidade também. Vou reclamar disso? Claro que não. Mas sei que é muito difícil que meu filho alcance esse tipo de inclusão."
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