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‘Terra’ de Sebastião Salgado faz 25 anos, e personagens de livro ainda esperam lote

(FOLHAPRESS) – ​Em 17 de abril de 1996, milhares de trabalhadores sob a bandeira do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) entraram na fazenda Giacomet-Marodin, no interior do Paraná, com 83 mil hectares, uma das maiores ocupações na história do movimento, com o fotógrafo Sebastião Salgado como testemunha.

A cerca de 2.700 km dali, no mesmo dia, em uma curva de Eldorado do Carajás, no Pará, outros sem-terra, que seguiam até Belém, foram atacados pela Polícia Militar em uma ação para desbloquear a rodovia PA-150. A ação deixou 19 sem-terra mortos.

Salgado recebeu a notícia ainda no Paraná e viajou em um avião alugado para o sudeste do Pará no dia seguinte. Em meio ao sepultamento coletivo das vítimas, ele fotografou Luiza Alves sentada em uma cadeira, rodeada por pessoas, chorando a morte do filho Oziel, 17, a vítima mais jovem.

Meses antes do massacre, ela, o marido e os outros filhos tinham embarcado para Confresa (MT) porque Luiza queria ficar perto da mãe. Deixaram no..

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(FOLHAPRESS) – ​Em 17 de abril de 1996, milhares de trabalhadores sob a bandeira do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) entraram na fazenda Giacomet-Marodin, no interior do Paraná, com 83 mil hectares, uma das maiores ocupações na história do movimento, com o fotógrafo Sebastião Salgado como testemunha.

A cerca de 2.700 km dali, no mesmo dia, em uma curva de Eldorado do Carajás, no Pará, outros sem-terra, que seguiam até Belém, foram atacados pela Polícia Militar em uma ação para desbloquear a rodovia PA-150. A ação deixou 19 sem-terra mortos.

Salgado recebeu a notícia ainda no Paraná e viajou em um avião alugado para o sudeste do Pará no dia seguinte. Em meio ao sepultamento coletivo das vítimas, ele fotografou Luiza Alves sentada em uma cadeira, rodeada por pessoas, chorando a morte do filho Oziel, 17, a vítima mais jovem.

Meses antes do massacre, ela, o marido e os outros filhos tinham embarcado para Confresa (MT) porque Luiza queria ficar perto da mãe. Deixaram no Pará dois filhos: Oziel, que sonhava com um pedaço de terra que desse sossego aos pais, e Antônio, mais velho que o irmão.

"Tem muita coisa que não lembro mais, não. Da hora que eu vi ele, eu não dei conta de nada mais, fiquei por conta dos outros, sabe? Não posso olhar para [a foto], que é uma lembrança muito triste. Olho e fico mal", diz Luiza hoje, aos 71, emocionada.

"Eu reconheci ele um pouco pela testinha, o cabelo. O rosto estava diferente. Só reconheci da testa para trás. Era ele mesmo."

Os momentos daquele abril, época de mobilização forte do MST pelo país, são alguns dos registros feitos durante cerca de dois anos em que Salgado acompanhou o movimento, reunidos no livro "Terra" (Companhia das Letras), há 25 anos.

A ideia surgiu quando o fotógrafo acompanhava o deslocamento de populações pelo mundo e entrou em contato com o MST para entender o abandono do campo em direção às cidades no Brasil, que mudava o desenho do país.

As imagens de "Terra", desde a vida comum nos acampamentos à dor da violência, viajaram o mundo com 2.000 kits de exposição impressos, lançamento em cidades como São Paulo, Rio e Lisboa, ajudaram na compra da sede do movimento na capital paulista e com o terreno da Escola Florestan Fernandes, em Guararema (SP).

O projeto, com prefácio do português José Saramago e músicas de Chico Buarque, teve ainda uma quarta autoria, lembra Salgado, sua esposa Lélia Wanick Salgado.

"O livro é um manifesto político feito por quatro autores. A gente só fala das minhas fotografias, do Saramago e do Chico, mas a Lélia que concebeu o livro, imaginou pela primeira vez na história da fotografia uma exposição tirada em 2.000 exemplares", diz ele.

João Pedro Stedile, 68, da direção nacional do MST, participou do lançamento da obra e diz que chegou a acompanhar Salgado em alguns momentos, mas que o movimento não tinha dimensão do que seria o trabalho.

O contexto, diz, era um Brasil em crise econômica e social, com grande contingente de sem-terra pelo país, e ao mesmo tempo, com repressão aos movimentos.

"O livro, as fotos em cartazes, os eventos, contribuíram para a difusão da luta do MST e também lhe deram uma certa proteção de apoio da opinião pública. A nível nacional, a opinião pública brasileira, e em especial a grande imprensa, se deu conta de que o MST era um movimento justo e necessário para combater o atraso das forças produtivas no campo, gerar emprego e futuro para milhões de brasileiros olvidados", afirma.

Entre as fotografias mais conhecidas estão dois retratos de meninas sem-terra, que viviam em acampamentos com as famílias, em busca de terra.

Uma delas, Joceli, então aos cinco anos, com olhos claros que encaram a câmera, Salgado encontrou no Paraná. Hoje, ela vive em um pré-assentamento na mesma região, ainda à espera do próprio lote e prefere não dar entrevistas.

O local onde vive é uma das 70 comunidades do MST no estado, que lutam pela regularização e formalização das terras, segundo o movimento. Há acampamentos no Paraná onde as famílias esperam há mais de 20 anos por um pedaço de terra.

A outra menina, Nete Alves Silva, também de olhar marcante, tímida pela falta de costume com a câmera, posou para ele em uma escola em Barra da Onça, Poço Redondo, no sertão de Sergipe.

Hoje, aos 34, Nete está assentada na região com o marido e o filho David Walter, de nove meses.

A foto, que ela tem em um quadro em casa, foi usada ainda na Campanha da Fraternidade, da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), em 1998.

"Eu lembro que a situação era difícil, a gente comia a merenda da escola, porque não tinha comida em casa", lembra.

"Daquela época para hoje, lá tinha muita fome, hoje o governo dá uma ajuda de R$ 400, estou sobrevivendo com esse dinheiro, porque a gente não tem trabalho. Depois dessa pandemia parece que piorou foi tudo."

Um quarto de século depois, passados três governos do PT, Salgado avalia que o MST deveria ter sido compreendido como política nacional de retenção da população no campo e que o grande erro histórico petista foi não ter realizado a reforma agrária.

"O projeto da agricultura brasileira acabou sendo o agronegócio, que é a expulsão de mão de obra, agricultura em grande escala mecanizada, envenenada. Todo mundo hoje se vangloria de ter um país que tem uma grande agricultura, mas isso teve um custo social brutal, de expulsão de uma grande parte da população brasileira, que poderia ter ficado no campo, vivido de outra forma, e hoje é marginalizada nas cidades", afirma.

"É imoral o que passou, o que se passa no campo brasileiro hoje. Tudo isso, toda essa política reacionária do campo, acabou gerando essa monstruosidade que está no poder hoje no Brasil, o Bolsonaro é o fruto de tudo isso."

O MST é frequentemente citado pelo presidente em discursos. Stedile responde dizendo que Jair Bolsonaro (PL) defende ideias fascistas e irresponsáveis, que incitam uso de armas e violência, sem resolver questões como produção de alimentos e emprego.

"Infelizmente muitas famílias estão acampadas há muitos anos, sobretudo porque, desde a eclosão da crise capitalista em 2014, e depois com o golpe contra a Dilma, o estado brasileiro e os governos existentes abandonaram a reforma agrária e as políticas públicas de apoio ao modelo da agricultura familiar", avalia.

Passados 26 anos desde o massacre de Carajás, Antônio, irmão de Oziel, que ficou com ele no Pará, foi assentado, e diz que dói pensar na forma como o irmão morreu.

Para Eric Nepomuceno, autor de "O Massacre: Eldorado dos Carajás: Uma história de impunidade" (Record), o episódio mostra como a Justiça brasileira é falha, quando se trata de pessoas poderosas.

"Eu definiria o massacre de Eldorado do Carajás como especialmente simbólico. Não apenas pelo número de vítimas: é que ele foi documentado. Houve testemunhas de fora, não apenas entre os sobreviventes. Ficou o registro da barbaridade não só das forças de segurança, mas também dos mandantes e da omissão criminosa de um governo estadual. O mais preocupante é que a violência contra lideranças populares dos sem-terra continua matando gente", diz.

Há ainda cerca de 28 pessoas que se denominam mutilados de Carajás, feridos que vivem com sequelas e nunca tiveram reparação, conta Lindomar de Jesus Cunha, o Mazinho, que estava com Oziel no dia do massacre.

"Estamos trabalhando para mover uma ação contra o Estado. É uma batalha difícil, porque se passaram 26 anos, prova some, papel se acaba e hoje as pessoas precisam provar que estavam no massacre. Às vezes, a pessoa está na fita, mas como está diferente hoje, a perícia não quer reconhecer", conta ele.

"Eu tinha 22 anos, hoje tenho 45. Tenho um pedaço de bala na perna ainda".

No Brasil, desde a divisão de terras nas capitanias hereditárias, com a chegada dos portugueses, se perpetuou a ideia da terra como título de nobreza, quando deveria ser usada para trabalho e produção, diz Salgado.

"[Carajás é] uma lembrança marcante, mas vi coisas fabulosas em relação ao MST, vi assentamentos em Santa Catarina produzindo erva-mate, assentamentos fantásticos, vi pessoas no interior do Paraná vivendo felizes, vi escolas rústicas, escolas primárias para crianças, vi funcionar os assentamentos e isso para mim foi uma coisa colossal", afirma.

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