Quando a bola rolar para Ucrânia e Escócia na semifinal da repescagem por uma vaga na Copa do Mundo do Catar, nesta quarta-feira, às 15h45, outros ucranianos, da mesma faixa etária dos jogadores, estarão em trincheiras lutando pelo seu país contra a invasão russa em ação militar iniciada em fevereiro. Os atletas da Ucrânia têm um desafio que, possivelmente, nunca imaginaram em suas carreiras. O duelo, que será realizado em Glasgow, definirá o adversário do País de Gales, no próximo domingo, para ver quem carimba o passaporte ao Mundial deste ano. Além da vaga, o orgulho ucraniano está em jogo.
"Se conseguirmos (vaga para a Copa do Mundo), eu terei vivido a minha vida por um motivo", disse o técnico Oleksandr Petrakov, cuja família está na Ucrânia, ao jornal The Guardian. "Eu tento brincar, contar aos atletas algumas histórias interessantes do futebol e da vida, para levantar o ânimo deles. É importante distraí-los dos maus pensamentos, mas, por outro lado, todos sabemos que as pessoas estão morrendo pela Ucrânia. Eles têm de mantê-los em suas mentes e corações, pois todo o país está esperando por alguma felicidade".
Cada membro da seleção ucraniana guarda na memória histórias recheadas de capítulos de tristeza, medo e preocupação para contar da guerra. Atletas e integrantes da comissão técnica estão sempre em contato com seus amigos e familiares, já que todos ainda têm pessoas próximas no país bombardeado pelos russos a mando do presidente Vladimir Putin. Motivação para vencer o jogo e dar um pouco de felicidade ao seu povo, claro, não falta, mas o futebol fica muitas vezes em segundo plano.
O volante Taras Stepanenko, do Shakhtar Donetsk, precisou mentir para os três filhos sobre os mísseis diários, dizendo que a ofensiva militar russa era longe de onde estavam. O meia Oleksandr Karayev sabe que seu irmão e sua cunhada, que deu à luz uma menina há pouco mais de um mês, têm acesso à água e comida, mas ele não pode enviar remédios porque ouviu rumores de que os russos confiscam medicamentos.
O goleiro Dmytro Riznyk, de 23 anos, passou os primeiros quatro dias da guerra em uma maternidade na cidade de Poltava, acompanhado da sua mulher e do filho recém-nascido. Mas no dia 30 de abril, Riznyk se juntou aos companheiros de seleção em uma viagem de ônibus de 20 horas de Kiev até a base de treinos, na Eslovênia. Assim o time se prepara para a disputa da vaga para a Copa.
UCRÂNIA SE PREOCUPA COM PARTE FÍSICA
A seleção esteve desde o início do mês de maio no centro de treinamento da Federação de Futebol da Eslovênia, em Brdo, cidade ao norte da capital Liubliana e próxima dos Alpes eslovenos. O local isolado e tranquilo está em total contraste com as regiões mais afetadas pela guerra em seu país. O convite para treinar no CT partiu do presidente da Uefa, Aleksander Ceferin, que é esloveno, e foi prontamente aceito.
O rendimento físico dos atletas é uma outra preocupação para a comissão técnica nacional, já que a liga de futebol do país foi suspensa ainda em fevereiro e, meses depois, encerrada de maneira antecipada sem decretar um campeão. Dos 25 jogadores que participam da preparação, 16 atuam em clubes ucranianos e deixaram os gramados por mais de um mês. Denys Popov, do Dínamo de Kiev, por exemplo, precisou trabalhar separadamente com um preparador físico. Corria onde dava. As duas sessões diárias de treino neste último mês ajudaram os jogadores a evoluir na parte física, mas ainda há preocupações.
"Nós fomos muito bem recebidos na Eslovênia, nos sentimos em casa e agradecemos a todos", disse o técnico Petrakov ao site da Federação Ucraniana de Futebol. Mykolenko, lateral do Everton, da Inglaterra, comemorou seu 23º aniversário no domingo, em um dos poucos momentos de risos e brincadeiras no grupo.
Para ter ritmo de jogo, a seleção ucraniana participou de três partidas em maio. Foram duas vitórias e um empate: 2 a 1 sobre o Borussia Mönchengladbach, da Alemanha, 3 a 1 no Empoli, da Itália, além de 1 a 1 com o HNK Rijeka, da Croácia. Havia a expectativa de disputar amistosos contra outros times e seleções, mas as negociações não avançaram. As três partidas também serviram para levantar fundos a instituições de caridades para o povo ucraniano.
"A Ucrânia ainda está viva", disse Zinchenko, que foi campeão inglês com o Manchester City, ao podcast World Football da BBC. "A Ucrânia vai lutar até o fim. Essa é a nossa mentalidade. Nunca desistimos. Posso prometer a todo o povo ucraniano que cada um de nós vai dar tudo para vencer o jogo e deixá-los orgulhosos de nós e apenas talvez por alguns segundos nós gostaríamos de dar a eles esse sorriso."
Na última sexta-feira, a seleção recebeu 150 crianças ucranianas que fugiram do país após a invasão russa. Meninos e meninas levaram bandeiras do país e desenhos para o centro de treinamento e ainda tiraram fotos com os atletas.
Do outro lado da semifinal da repescagem, o lateral-esquerdo escocês do Liverpool, Andrew Robertson, disse que a solidariedade com o povo ucraniano estará presente antes e depois da partida, mas o sentimento não poderá "entrar em campo" e atrapalhar o sonho de sua seleção de ir para a Copa do Catar.
TODOS QUEREM QUE A UCRÂNIA VENÇA
"Quando você assiste (o que acontece lá), é horrível. Você não pode evitar, mas precisamos tentar separar isso. Não consigo imaginar o que eles estão passando, mas temos de estar prontos para a batalha. Como jogadores, queremos ir a uma Copa do Mundo", disse à BBC. "Provavelmente todos no mundo querem que a Ucrânia vença. Se fosse qualquer outro país, eu provavelmente gostaria que eles vencessem, mas infelizmente eles estão jogando contra o meu país".
Aos 64 anos, o técnico Petrakov, que levou a Ucrânia a ser campeã mundial sub-20 em 2019, tentou se alistar ao exército no início da guerra, mas foi dispensado. "Seria errado eu fugir da cidade em que nasci", contou à revista Time. "Mas eles disseram 'você é muito velho e não tem experiência militar. No entanto, é melhor você nos trazer a vaga para a Copa do Mundo'". O treinador quer uma punição esportiva mais pesada aos russos. "Não há raiva, apenas ódio".