Saiba mais

‘Os Lusíadas’: a obra que ‘fundou’ a língua portuguesa há 450 anos

Publicada em 12 de março de 1572, há 450 anos, a célebre criação do poeta Luís Vaz de Camões pode ser considerada a certidão de nascimento da língua portuguesa. Pintura da nau de Vasco da Gama, feita no século 19 por Ernesto Casanova
Domínio público
Esta matéria foi publicada originalmente em 11 de março de 2022 e volta a ser reproduzida neste 5 de maio por ocasião do Dia Mundial da Língua Portuguesa.
“As armas e os barões assinalados,/ Que da ocidental praia Lusitana,/ Por mares nunca de antes navegados,/ Passaram ainda além da Taprobana,/ Em perigos e guerras esforçados, / Mais do que prometia a força humana, / E entre gente remota edificaram/ Novo reino, que tanto sublimaram.”
Assim começa a obra que pode ser considerada a certidão de nascimento da língua portuguesa. Publicada em 12 de março de 1572, há 450 anos, a célebre criação do poeta Luís Vaz de Camões (nascido provavelmente no ano de 1524 e morto provavelmente em 1580) é formada por dez cantos, 1.102 estrofes e 8.816 versos, ..

Publicado

em


Publicada em 12 de março de 1572, há 450 anos, a célebre criação do poeta Luís Vaz de Camões pode ser considerada a certidão de nascimento da língua portuguesa. Pintura da nau de Vasco da Gama, feita no século 19 por Ernesto Casanova
Domínio público
Esta matéria foi publicada originalmente em 11 de março de 2022 e volta a ser reproduzida neste 5 de maio por ocasião do Dia Mundial da Língua Portuguesa.
"As armas e os barões assinalados,/ Que da ocidental praia Lusitana,/ Por mares nunca de antes navegados,/ Passaram ainda além da Taprobana,/ Em perigos e guerras esforçados, / Mais do que prometia a força humana, / E entre gente remota edificaram/ Novo reino, que tanto sublimaram."
Assim começa a obra que pode ser considerada a certidão de nascimento da língua portuguesa. Publicada em 12 de março de 1572, há 450 anos, a célebre criação do poeta Luís Vaz de Camões (nascido provavelmente no ano de 1524 e morto provavelmente em 1580) é formada por dez cantos, 1.102 estrofes e 8.816 versos, todos em oitavas decassilábicas, sempre arranjados em um esquema rímico fixo.
LEIA TAMBÉM
NOVO ENEM: questões discursivas, ênfase em português e matemática… Saiba o que muda
REDAÇÕES NOTA MIL: leia exemplos do Enem 2020
NÃO É O DO BBB: P.A. sempre cai no Enem; entenda a progressão aritmética
Trata-se do poema épico Os Lusíadas, que narra a descoberta, pelo navegador português Vasco da Gama (1469-1524), da rota marítima para a Índia — um marco nas relações comerciais e exploratórias do século 15 e, de certa forma, a consolidação de um momento historicamente relevante para Portugal.
Ao longo de seu texto, o poeta, que se dirige ao rei Sebastião I (1554-1578), evoca episódios da história lusitana de forma épica, sempre buscando glorificar o povo português.
Mas a grandeza de Os Lusíadas não se resume ao engenhoso e esmerado formato adotado por Camões, nem pelo grande número de versos, tampouco pelas próprias histórias de heroísmo ali narradas.
Os Lusíadas se tornou um marco pelo uso da língua portuguesa — na época chamada apenas de "linguagem", quase como de modo pejorativo quando comparada ao jeito culto de se expressar por escrito, ou seja, o latim.
E, protagonista e fruto de um momento histórico de valorização de tais identidades, a obra é reconhecida como uma espécie de literatura fundadora do idioma hoje oficialmente praticado em Portugal e em outros oito países, inclusive o Brasil.
Doutor em estudos literários pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e criador do canal no YouTube Elite da Língua, o professor Emerson Calil Rossetti situa Os Lusíadas como "a maioridade e a identidade poética da língua portuguesa".
"Constituem de fato uma referência para e sobre a língua portuguesa. Não somente por ser uma obra-prima, o que é hoje consensual, mas por ser a primeira produção do idioma que alcança prestígio para além das fronteiras de Portugal ou dos países lusófonos", argumenta ele.
Primeira edição de 'Os Lusíadas'.
Domínio público
Poeta fundador
"Camões captou com precisão o espírito da Renascença, tomando como base as epopeias antigas e construindo seu longo poema com soluções estéticas típicas da perfeição formal da época mas a partir das possibilidades expressivas da nossa língua, como jamais se havia visto", analisa Rossetti.
"É o caso, por exemplo, do ritmo bem marcado e regular dos decassílabos heroicos e, num universo repleto de alusões históricas, mitológicas e cristãs, as combinações de rimas que caracterizarão, igualmente, as 1102 estrofes da epopeia."
Professora livre-docente da Universidade de São Paulo (USP), onde é pesquisadora do Departamento de Línguas Clássicas e Vernáculas, a linguista Marcia Maria de Arruda Franco contextualiza a obra como parte de um momento de "dignificação da língua portuguesa como língua de cultura".
"Até o século 16, era muito raro que um autor em Portugal escrevesse em português. E mesmo ao longo do século 16, as línguas de cultura preferidas dos letrados, tanto os humanistas puros que usavam o latim, como os impuros que usavam as línguas vulgares, era o castelhano ou o latim em vez do português", esclarece ela.
Arruda lembra que esse movimento vinha sendo experimentado por alguns escritores, como é o caso de Sá de Miranda (nascido provavelmente em 1487 e morto em 1558), "que ousavam essa aventura de descobrir o valor letrado da língua portuguesa, de trabalhar sobre sua elocução, de escrever em português".
"Ao longo do século 16, vários vão levar a cabo essa tarefa de escolher a língua portuguesa como língua de cultura. Não só no discurso poético, mas também no discurso histórico. [O idioma está presente] nos cronistas que escrevem sobre as grandes descobertas, quando a língua portuguesa é a preferida", conta ela.
Vale ressaltar que já desde o reinado de Manuel I (1469-1521), médicos portugueses eram obrigados a efetuar suas prescrições em língua portuguesa. "Em 'linguagem', como eles diziam. Naquela língua falada, que todo mundo entendia", comenta a professora.
Era um período de ebulição acadêmica, na qual os linguistas se propunham a entender e explicar a organização daquilo que se falava. "Começa a surgir a filologia portuguesa, uma série de gramáticas em defesa da língua portuguesa como língua de cultura, e não mais apenas como 'linguagem'", contextualiza Arruda. "'Os Lusíadas' culminam esse processo, fazem com que esse processo se consolide."
"Porque 'Os Lusíadas' são escritos em gênero épico, sublime. Relaciona-se às épicas da cultura clássica ocidental, da cultura antiga, que era modelizada pelos renascentistas. 'Os Lusíadas' estão em linha direta com outras épicas, de Homero [da Grécia Antiga] e de Virgilio [da Roma Antiga]", diz a linguista.
Para o escritor Ênio César Moraes, professor de língua portuguesa e assessor pedagógico do Colégio Presbiteriano Mackenzie Brasília, a importância de Os Lusíadas pode ser dividida entre os aspectos literário e histórico:
No primeiro quesito, o mérito recai sobre "o fato de se tratar de uma epopeia, obra épica que, no plano artístico-literária, põe Portugal ao lado de nações como Grécia e Roma". Moraes observa que, não à toa, o próprio narrador do poema "afirma, altaneiro": "Cessa tudo o que a Musa antiga canta/ Que outro valor mais alto se alevanta". "[Está] enaltecendo a temática da obra, em comparação às produções grega e romana", interpreta.
Já o segundo ponto está no fato de que o texto de Camões é a "narrativa de grandes feitos do povo português, na pessoa de Vasco da Gama, à época das grandes navegações".
"Virgílio [o poeta romano] é o grande interlocutor de Camões. E com esse trabalho ['Os Lusíadas'], ele engrandeceu o português e o consolidou como língua de cultura. Fez isso graças ao seu trabalho de escrever com tropos, figuras, imagens, um todo. Realizou um trabalho sobre a prosódia dos versos, escolhendo os decassílabos, a oitava para urdir o seu poema, sua épica… Trabalhou a elocução da língua portuguesa", complementa Arruda.
Shakespeare, Alighieri…
A obra garantiu a Camões o mesmo lugar na língua portuguesa ocupado por William Shakespeare (1564-1616) no inglês, Dante Alighieri (1265-1321) no italiano, François Rabelais (1494-1553) no francês, e France Prešeren (1800-1849) no esloveno. Em suma, cada língua considerada moderna tem no trabalho de um grande escritor a consolidação de suas bases e a matriz de suas normas.
"Camões representou esse movimento de defesa e ilustração das línguas ditas vulgares, faladas no dia a dia. Que foi geral na Europa, quando todas as línguas nacionais dos reinos passaram a ser utilizadas também na língua de cultura, em detrimento do latim", diz a linguista Arruda.
"Em Portugal, havia a opção entre duas línguas vulgares: o castelhano e o português. Mas cada vez mais os letrados preferiram escrever em português", acrescenta ela.
Camões mesmo já havia escrito poemas em espanhol. Decidiu utilizar o português para Os Lusíadas e, logo em seguida, sua obra também foi traduzida — ainda no século 16, ganhou três traduções para o castelhano e pelo menos uma publicação em latim, conforme pesquisas de Arruda.
"Do ponto de vista da história da evolução da língua, o português atinge seu estágio moderno exatamente no século 16", ensina Rossetti. "É quando o idioma se uniformiza e adquire as características básicas que ainda hoje se reconhecem nas nossas gramáticas."
"A obra de Camões assimila essa nova feição e legitima as potencialidades da nossa língua como expressão poética de temas universais e aspectos atemporais acerca da condição humana. Por meio dos recursos fônicos, morfológicos e sintáticos, o escritor confirma o potencial também inventivo: a natureza literária do idioma. Nesse sentido, a língua portuguesa torna-se, pela sua pena, uma herança cultural, modelo de possibilidades de exploração criativa", diz ainda o professor. "Por isso, Camões é patrimônio, como também Shakespeare e Dante."
Rossetti lembra que a partir das letras de Camões abriu-se um "espaço para outros gênios do pensamento ocidental" em língua portuguesa. "É um novelo de muita linha, e a primeira ponta desse fio se chama Camões", resume.
Professor Moraes ressalta que a época em que o poeta viveu, o Renascimento, foi marcada por efervescência científica e artístico-cultural. Assim, com Os Lusíadas, ele "deu visibilidade ao povo português, ao ressaltar feitos grandiosos do presente, as grandes navegações" e também garantiu "importante referência para os estudos filológicos e linguísticos promovidos nos séculos seguintes".
"Como sabemos, a língua é um dos principais elementos de identidade nacional, e o excelso caráter nacionalista da sua narrativa exalta, para além do conteúdo, a língua portuguesa. Não é à toa que, até hoje, o poeta português figura como um dos maiores nomes da literatura lusófona", pontua ele.
Apenas no vestibular?
Quatrocentos e cinquenta anos depois, por que vale a pena ler Os Lusíadas ainda hoje? Para os especialistas, não se trata apenas de uma obra "para o vestibular" — o livro pode e deve ser lido como cultura geral, principalmente por pessoas lusófonas.
"[Seus versos] são uma aula de retórica. Quem quiser aprender retórica que leia 'Os Lusíadas', entenda toda aquela estrutura persuasiva", defende Arruda.
"Sua estrutura persuasiva, ele [o poeta-narrador] quer convencer o rei [português] de alguma coisa, convencê-lo a continuar essa aventura, essa luta dos portugueses para manter seu império", explica a linguista.
"Bem, os clássicos são os clássicos. E isso responderia à questão [sobre as razões para se ler Camões hoje] de forma simplista mas eficiente", acrescenta Rossetti.
"Para ser, então, mais exato e pontual, diria que obras como 'Os Lusíadas' têm a ver com a nossa história: a cultura, as crenças, as reflexões, os valores, a memória."
Para o professor, "não se pode construir um projeto futuro sem o conhecimento e a devida compreensão do passado, sobretudo quando ele ainda faz tanto sentido nos dias de hoje". "Afinal, continuamos seres desbravadores, vibramos com as conquistas que ampliam os limites da geografia e do conhecimento, sentimos emoção diante das histórias de amor ainda que com cores trágicas", analisa.
Além disso, ele ressalta a questão da lusofonia. "Principalmente, falamos a mesma língua e precisamos, provavelmente mais que no século 16, de exemplos inteligentes, admiráveis e sensíveis: necessitamos sempre de boa poesia, de qualquer período, visto que os clássicos não envelhecem", conclui.
Moraes defende que "ter contato com os clássicos" é fundamental para a "construção do repertório artístico-cultural do indivíduo". "Nenhuma obra se torna um clássico por mero trabalho de marketing", argumenta.
"No caso das epopeias, ainda mais", compara. "Como se não bastasse a magnitude da forma, tem-se a maravilha do conteúdo, que nos conduz 'por mares nunca dantes navegados'. Ademais, propicia o estudo do passado histórico, sob a perspectiva poética. Inclusive, pode proporcionar um interessante trabalho comparativo entre os ofícios do historiador e do escritor-artista."
Problematizações contemporâneas também são possíveis, é claro. E, se compreendidas dentro de cada contexto histórico, podem gerar reflexões sem cair em anacronismos. Arruda frisa que não se pode esquecer que, em seu conteúdo, Os Lusíadas "sublinham essa coisa que a gente considera horrível: a ideologia imperialista, cruzadista".
"É um monumento ao poder e não deixa de ser um pouco chocante para nossos ouvidos, por exemplo, o modo preconceituoso como os mouros são apresentados na obra", exemplifica. "Isso não é do poeta. É do gênero [épico] e é da época. Por isso que a crítica contemporânea brasileira apresenta uma leitura de 'Os Lusíadas' que salienta sua contradição, justamente o elogio e o questionamento da posição invicta e hegemônica portuguesa."
Por outro lado, também é importante ressaltar que a obra é um retrato daquilo que pode ser considerada a primeira globalização. "Essas 'descobertas' dos navegadores se tornaram importantes como a primeira ligação planetária da Terra, a primeira vez que todas as culturas entram em contato e se tem essa visão do globo. Isso vai ser sempre importante", diz Arruda.
"Podemos dizer que são questionáveis, já que no encontro de culturas a diversidade acabou esquecida e apagada, reprimida pelo eurocentrismo que doutrina o mundo… Mas 'Os Lusíadas' vão sempre ter a importância de relatar esse primeiro contato entre culturas, ainda que em confronto de poder entre o europeu hegemônico e os outros povos subjugados."
Vídeos

Deixe uma Resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Tendência

Sair da versão mobile